segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Fuja da camisa de força gospel

Marcão, vocalista da banda Fruto Sagrado (artigo publicado em agosto de 2004)


Li no mês passado um artigo assinado por Osmar Ludovico (pastor da Comunidade de Cristo, em Curitiba - PR) que me deixou extremamente feliz. Ele fez uma explanação sobre o cristão e a arte de forma inteligente, equilibrada e espiritualmente perfeita. Ludovico esclarece que a arte como expressão cultural e criativa pré-existe à criação do Universo porque foi Deus quem a criou. A natureza, a vida humana, os micro e macro organismos são obras-primas, resultado do gênio criador e artístico de Deus e que toda origem e fonte de arte, criatividade e a capacidade de apreciar o belo são concedidas por Ele a todos os seres humanos, independente do credo religioso.

O pastor afirma que dentro desta sociedade dominada pela razão egoísta e pelo dinheiro, qualquer artista passa a ser um profeta porque a arte toca o espírito do ser humano e, por isso, o poder da criação artística não pode ser utilizado apenas para fins comerciais, pois arte é muito mais que entretenimento, diversão, decoração ou parte de cerimônias e rituais. Segundo o líder (e eu concordo com ele com todas as forças), a arte, a criatividade, o esforço cultural e a apreciação do belo não necessitam de justificativas ou espiritualizações. Não existem dois mundos sobrepostos, o espiritual e o mundano, mas um só mundo, o real. Isto é, ou Cristo redimiu o homem todo ou então não redimiu nada. Ou todas as áreas da nossa vida se submetem ao senhorio de Cristo, ou nenhuma. Dividimos e dizemos: “isto é espiritual, isso é secular”. Essa cisão acaba por nos fazer aceitar a mediocridade na arte feita por cristãos, seja na pintura, teatro, dança, literatura e música comercializados e aceitos sem discernimento, só porque tem tema “espiritual”, mas cujo conteúdo artístico é pobre ou inexiste.

Ele continua afirmando que nós, cristãos evangélicos, colocamos uma camisa-de-força em nossos artistas. Exemplo: o músico tem que entrar para o coral da igreja ou para alguma gravadora evangélica e cantar só música “gospel”; o pintor só pode pintar “anjo”; o produtor de teatro só pode fazer peças evangélicas; o poeta só pode citar textos bíblicos; quem dança só pode inventar coreografias inocentes e somente dentro da igreja ou então dançar o folclore judaico. Durante o artigo, ele faz uma pergunta que é a mesma que faço há mais de 15 anos: “onde estão nossos eruditos populares e de vanguarda criando sem censura, com autenticidade, integridade e sem concessões comerciais?”

Em todos esses anos em que participo do Fruto Sagrado pude e ainda posso, infelizmente, constatar muitos artistas cristãos usando essa tal “camisa de força-gospel”, repetindo temas de forma pasteurizada, tentando lamentavelmente imitar nomes de expressão nacional ou internacional, sepultando o poder criativo dado por Deus, sem o menor constrangimento.
Os que não se conformam com esse “confinamento” são em sua maioria, marginalizados, renegados a guetos e a pequenas cavernas.

É no mínimo desagradável sofrer censura, ser rotulado, boicotado e por vezes desprezado por não atender as imposições comerciais pseudo-cristãs desse “mundo paralelo”, tão ou mais cruel e injusto que o “mundo normal”. Luto até hoje contra essa “arte evangélica gasosa”. Apesar do Fruto Sagrado ter lançado seis discos, lamento o rótulo imposto, que impede o nosso trabalho de extrapolar os muros eclesiásticos. Particularmente, no setor da música realizada por cristãos aqui no Brasil, vejo muitos se tornando obssecados com detalhes financeiros, a ponto de perderem de vista a arte, a criatividade e a tão proclamada “espiritualidade”.

Aonde chegaremos com tanto legalismo e distorções teológicas a respeito da arte? Será que em nosso atual “ambiente” ainda existe oxigênio criativo? Quantos observam estarrecidos a ditadura da mediocridade que impera em grande parte das livrarias, programas de TV, rádios, gravadoras e igrejas? Oro por uma reforma estética e ética, e que todos os nossos artistas cristãos tenham a opção de serem artistas, não só para o “mundo sacro”, mas também para a arte popular e contemporânea, livres para fazer arte com temas bíblicos ou com temas do cotidiano ligados a realidade, comum a todos os seres humanos, evangélicos ou não.

Como um artista cristão será sal e luz de forma plena, sendo agente transformador da sociedade onde vive se estiver confinado, amarrado literalmente a essa “camisa-de-força-gospel”? Meu sonho é um dia presenciar cristãos criando e atuando artisticamente em novelas, filmes, peças, apresentações musicais, livros, etc, assistidos por qualquer ser humano, independente do credo religioso, em qualquer mídia, livre de rótulos, censuras, preconceitos e inquisições impostas pela mentalidade vigente da “camisa-de-força”.

Que o único, e grande mecenas, o Senhor nosso Deus, criador da arte, da criatividade e do poder de apreciar o belo nos livre, no tempo de sua vontade, dessa “camisa-de-força-gospel” em que vivemos.


Que Deus nos abençoe! (grifos meus)

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